Maria, no Natal, não quero cheirar teu bacalhau



"Quero cheirar teu bacalhau Maria
Quero cheirar teu bacalhau
Mariazinha deixa-me ir à cozinha,deixa-me ir à cozinha
P'ra cheirar teu bacalhau"


Adoro o cheiro do peixe fresco. Mas no hipermercado o peixe tornou-se inodoro e as montras frigoríficas exibem-no como peças de arte, emoldurados entre gelo picado e salsa, e outros adornos mais plásticos. Além deste temos o cirúrgico espectáculo das carnes. Hoje tudo está meticulosamente embalado em tabuleiros brancos e celofane, rotulado. Nem mosca nem mão afastando a mosca. Eis um gesto que a modernidade apagou, garantia suposta de segurança e higiene, sabemos lá nós a que farinhas e outros aditivos engordou aquela fatia vermelha de novilho perfeitamente embalada e rotulada. Por vezes penso que sou uma vegetariana em potência à espera de um pretexto. Mas um amigo biólogo garantiu-me que qualquer alface de aspecto inofensivo é uma perfeita bomba de resíduos químicos! Não sei cozinhar. Isto é, sei tornar a comida comestível. Géneros que tenhamos de sujeitar a exercícios de corte e cozeduras em lumes mais ou menos brandos, suadelas no aconchego dos vapores, crestas ao lume e preparos com delongas de requinte são para mim um mistério. O que não significa que não goste de boa comida - comer em boa companhia é uma das minhas artes dilectas. Com um bom vinho que me faça ruborescer e soltar-me um riso de borboletas dançarinas, então é perfeito.

A propósito da ementa de bacalhau cozido, a meu ver tristemente, com batata e couve, talvez um ovo e uma cenoura também, com que em muitos lares se pratica a tradição do Natal à mesa, lares, empresas e afins, eis sobre o que me apetece escrever agora, pois hoje havia uma pequena multidão à volta da banca do bacalhau no hipermercado. E ainda estamos a mais de um mês do evento! Uma vez a maré da recessão levou da mesa do meu “jantar de empresa” esse desafamado prato substituindo-o por nenhum: não houve confraternização natalícia. Agradeci à crise general – sim, general, porque é ela quem está no comando - e à magreza orçamental da instituição pois se havia noite do ano em que rapava fome era nessa.

Nem arte nem bom senso em servir um peixe tão maravilhoso de uma forma tão insípida, e, ainda por cima, fria, num jantar que é supostamente de festa e não de expiação ou penitência. Para mim era mesmo penitência. Comia o ovo e rezava para que o final do transe chegasse depressa, pois havia sempre a esperança de uma fatia de Bolo-Rei e de um copo de Porto para esquecer a desdita e aquecer a alma. Imaginava que seria bom trabalhar numa organização não governamental de perfil ambiental: talvez nessas já alguém se tivesse lembrado de substituir o prato por qualquer coisa vegan e já vou escrever sobre o motivo a invocar! O bacalhau é uma espécie em vias de extinção. Antes dela se extinguir irá certamente extinguir-se a nossa frota bacalhoeira. O cão pode ser o melhor amigo do homem mas o bacalhau é o melhor amigo de qualquer português.

Quando era criança adorava sacar lascas das postas secas às escondidas e sugar-lhes o sal. Comigo foi assim que começou a minha descoberta do bacalhau. Todo o português que se preze anda atrás do bacalhau. E já nem falo daquele cantor que quer cheirar o Bacalhau da Maria. No Natal, então, é uma corrida de fórmula repetida. O concorrente directo do português, é, fiquem a saber, a foca. Parece que a foca pode comer até 30 quilogramas de bacalhau por dia o que a transforma numa comilona sem maneiras. Ainda por cima, nem sequer deixa que o peixinho se torne adulto, papa-o logo que este lhe cabe na boca. Muito antes de ser apanhado pelas redes e acabar nos nossos estômagos, existem portanto as esfaimadas focas canadianas. As focas eram uma espécie em vias de extinção. Passaram de perseguidas e hiper-protegidas e agora andam a dar cabo de tudo quanto é bacalhauzito “pacanino”, quando um espécimen demora cinco anos a ser capaz de reprodução! Ora isto é calamitoso! Preparemo-nos! Dentro em breve nem miúdo, nem corrente, nem crescido, nem graúdo nem especial. Ficarão para a história as 1001 maneiras que se diz existirem para o levar à mesa. A cadeia alimentar é tramada.

Comentários

Quarenta disse…
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Quarenta disse…
Belinha:
Está muito bom, este "post".
A temática é interessante e a expressão escrita mais ainda.
Bjs.
dodo disse…
Molho de alho e beterrabas: acompanam o bacalhau na mesa grega...