O beijo de Richard Gere e o choque de culturas



(A propósito das beijocas na bochecha que Richard Gere andou a dar a uma mulher indiana e que lhe deram direito a mandato judicial, possível multa e prisão, lembrei-me deste texto escrito há quase dois anos. Nem tudo se aplica, apenas uma ou outra ideia.)

O entendimento evolucionista da cultura entende-a como um processo civilizador que estratifica a humanidade por níveis culturais dividindo-a entre primitiva e evoluída, explicando assim a diversidade cultural. O entendimento funcionalista, enforma a diversidade cultural em modelos estanques, autónomos e coerentes, sem comunicação. Nega a transformação imanente à acção dos indivíduos e grupos. O homem sempre teve necessidade de conceptualizar e de organizar o meio, daí estas heranças, não necessariamente erradas, não necessariamente certas, apenas entendimentos que devem ser situados numa leitura temporal da nossa evolução cultural. E, verdade, é sempre melhor uma explicação que nenhuma explicação do que nos rodeia!
Quando penso em cultura, penso imediatamente em expressão criativa, em manifestação que nos atribui a verdadeira faceta de humanos e de cidadãos, elemento verdadeiramente diferenciador do ser humano no reino da biodiversidade. Aqui o criador não é unicamente o artista, cada pessoa encerra em si um potencial criativo, logo é agente cultural individual ou no seu grupo. A cultura é tudo o que conseguimos apreender do mundo que nos rodeia e, simultaneamente, a nossa acção sobre ele. É, um modo de existência e um modo de expressão.
A multiplicidade de culturas e subculturas sempre existiu, o que não existiu sempre foi a actual multiplicidade de canais comunicantes entre elas. No contexto da mundialização da nossa actual condição o seu confronto pacífico ou não, tornou-se evidente. As dinâmicas de interligação e intercâmbio tornaram-se incontroláveis, longe estamos da expansão espanhola ou portuguesa e da divisão do mundo conhecido entre as duas potências! As identidades culturais parecem pois ameaçadas de pulverização, quanto mais permeáveis ao enriquecimento, mais atrofiadas na sua conformação original. Mas terá de ser necessariamente assim?
Não se pode pensar cultura sem transformação em virtude do seu carácter dinâmico que lhe permite reinventar, tomar de empréstimo de outras culturas, apagar e recuperar contributos culturais. A prática humana quotidiana está repleta de envolvimentos quer directos quer mediados, num tecido socialmente diverso. Este contacto é enriquecedor enquanto fomenta aquisições, é plástico enquanto fomenta adaptações, é criativo enquanto fomenta explorações e activa soluções de mudança. Mas é também gerador de conflitos.
Sou forçada a entender a cultura como um processo em construção e um processo de problematização do que me rodeia. Não é através dela que construo a minha identidade? Então é também através dela que a questiono e problematizo. A identidade é um sentimento de pertença a uma cultura própria. Penso que actualmente a identidade cultural é um conceito em expansão justamente em virtude da globalização que imprimiu às sociedades modernas uma vocação entrelaçada ou de rede. Estamos todos ligados e em virtude disso teremos de aceitar ganhos e perdas, é inevitável. O desafio é encontrar o equilíbrio, quando o equilíbrio é possível! Ou então fundamentar e objectivar o desequilíbrio! É negociar a conciliação no choque, é não desvirtuar o adquirido, é fomentar uma aprendizagem de respeito pelas relações interculturais. Temos uma identidade pessoal, uma identidade nacional, uma identidade europeia. Não as sentimos todas de forma igual, não as assumimos de forma igual. Construída uma identidade através de uma aprendizagem, adquiridos traços simultaneamente distintivos e geradores de pertença grupal – sejam modos tradicionais de vida, comportamentos, instituições, etc – compreende-se a necessidade da sua preservação por um lado, mas também, e fruto das trocas e redes próprias das sociedades modernas, a da sua coexistência. Para mim é uma certeza que nada ganharemos se caminharmos no sentido da indiferenciação ou banalização das culturas pois a diversidade é em si mesma um património, uma riqueza. Por isso sou apologista da preservação de tudo quanto seja herança cultural, tarefa difícil pois o homem parece ter uma inata vocação para a extinção, mais do que para a preservação do que quer que seja!! Por um lado é importante trabalhar para preservar identidades construídas, por outro mais importante ainda dar-lhes uma visibilidade contextualizada e significante que permita o estabelecimento de sentimentos como a tolerância, o respeito, a partilha, capazes de esbater preconceitos muitas vezes fundados nos estereótipos e no desconhecimento, e o reconhecimento do valor da diferença. Não raras vezes é a própria globalização com os seus mecanismos mediáticos redutores que distorce a essência destas identidades fomentado o choque intercultural. E se o choque entre identidades culturais também sempre existiu e por vezes com perdas gravíssimas para os dominados, porque infelizmente as relações de poder permitiram o seu domínio, penso que com o que já aprendemos, devemos fomentar uma educação para a diversidade que permita contrariar a também muito facilitada difusão de pré-conceitos. O que nem sempre é fácil! A emergência de um novo grupo de direitos, os direitos à identidade cultural, depois dos cívicos, políticos, e sociais, é testada numa situação ilustrativa de conflitos identitários. Refiro, por exemplo, o conhecido caso de Barrancos e o protagonismo dos media no desencadear de toda a problemática, encarados como força de configuração social e cultural. O fenómeno foi desinserido do seu lugar e televisionado, jornal-comentado, ganhando uma visibilidade acrescentada, reconstruída, e entrando assim “manipulado” no domínio da opinião pública, sendo então realçados uma série de justificativos: a singularidade identitária da festa versus a barbárie, e depois ainda, a ausência de intervenção da autoridade ou a lacuna legal, que segundo alguns, devia contemplar uma excepção em nome de um “estatuto de cidadania cultural”. Para mim este nem é sequer um caso limite. Outros existem que me levam a testar as minhas convicções em relação à coexistência e defesa das diversas identidades culturais num mesmo espaço territorial, por exemplo, o caso do estatuto das mulheres muçulmanas, um dos tais cuja diferença parece comprometer a universalidade de direitos e dignidade da pessoa humana, quanto a mim uma aquisição inegociável da identidade cultural de humanidade, um núcleo conquistado e intocável.

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