Televisão: Dexter ou não, eis a questão


Em que tempo e espaço se perderam o meu gosto pelas edificantes histórias humanistas, a minha preferência pelos heróis íntegros e de bom coração?

Ver TV não é sequer dos meus passatempos favoritos, abdicaria dela sem grandes problemas. Ontem passou na Dois mais um episódio de DEXTER. É a única série de TV que sigo com interesse neste ano de 2008. Não tenho canais à dúzia. Não tenho dinheiro para isso e mesmo que tivesse não teria tempo para os ver. Por isso basto-me em ir consumindo o que dá a televisão dos pobres e por isso é provável que alguém me prove que se diverte mais, aprende mais ou ganha mais com os tais não sei quantos canais. A minha avó dizia muitas vezes que não percebia porque é que eu comprava tanta roupa e tanto calçado: afinal só tinha um corpo e dois pés. Viveu sempre com pouco e viveu quase um século. Sociedade de consumo, claro, mas nem oito, - sim, nem viver como uma austera mulher amish, - nem oitenta, - tipo mulher de presidente terceiro-mundista, carregada de sapatos e vestidos para alimentar as traças do guarda-roupa enquanto o povo passa fome! Haja bom senso!

Realmente o meu dia é sempre demasiado curto, portanto...Em nome do bom senso, e depois de ter visto o primeiro episódio de DEXTER, devidamente acompanhado do aviso de cenas e linguagem eventualmente chocantes e círculo vermelho no topo direito do ecrã, interroguei-me há umas semanas atrás se já não conseguiria divertir-me sem ser a ver séries carregadas de violência: é o Jack Bauer a torturar o próprio irmão que o pai mata de seguida, é a cabeça decapitada de Sara metida numa caixa em Prison Break e já nem vou referir a tortura em The Shield! Sinto que entrei noutra dimensão e já não consigo sair dela. O portal fechou-se!

Em que tempo e espaço se perderam o meu gosto pelas edificantes histórias humanistas, a minha preferência pelos heróis íntegros e de bom coração?! Sempre existiram bons e maus e vilões nas histórias. E sempre existiram personagens complexas, de perfil matizado, que nos provocavam ambivalências difíceis de resolver.  Mas na ficção actual os bons são afinal os maus e os maus são bons... e os vilões até são cativantes! E às tantas damos por nós a torcer por um serial killer!

Mas qual é afinal o critério utilizado para dar o selo vermelho a estas séries??! Litros de sangue?!Número de vítimas? Calão cru? Sexo?Tudo isso em doses diversas? Contas feitas por alto e nada concluí de justo. Os argumentistas esforçaram-se a valer para legitimarem DEXTER tentando a todo custo levar-nos a considerar que ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão e fizeram um bom trabalho. Mas DEXTER é basicamente um assassino que mata com prazer e requinte de coleccionador outros seres humanos. E ainda que estes não sejam modelos de conduta não mereceriam, a não ser face a uma qualquer lei de Talião, que não posso subscrever, um tal tratamento.Terei então eu de assumir que a atracção pela violência, por implícita que seja, é afinal o que garante que todas as quartas feiras à noite eu me sente a olhar para o rectângulo luminoso da TV?!!

Lá se foram meia dúzia de anos de estudo do Direito às urtigas - parece que nem o estudo/conhecimento da lei nos garante imunidade contra o engenho malicioso do Mal!Talvez isso não seja inédito mas DEXTER tornou-o escabrosamente evidente, tanto que me fez questionar a minha natureza!E à luz duma ideia básica que informa toda a trama em DEXTER - ninguém conhece verdadeiramente o outro,- eu quase poderia dizer que nem a nós mesmos nos conhecemos verdadeiramente quanto mais!

Tenho de concluir como brilhante que um argumentista me tenha conseguido colocar em choque com as minhas convicções éticas e morais confessadamente rendida ao espectáculo semanal das atrocidades de um serial-killer como forma de diversão. Porque vencida, ou independentemente disso, ou talvez mesmo por causa disso, DEXTER aconselha-se e muito porque é superiormente bem escrita, interpretada e dirigida. É uma ficção que nos trata como consumidores adultos e exigentes na era do alienado consumo televisivo. É uma série que nos desafia no limite do nosso comando televisivo: teremos efectivamente o comando do nosso consumo?! Esta temporada poderia ser facilmente um filme de luxo! Infelizmente a tentação de quem encontra uma fórmula de sucesso em televisão é fazê-la render e assim, depois de resolvido o mistério do Ice Truck Killer, novos casos se hão-de seguir, novas temporadas.E infalivelmente lá chegará a noite em que me redimirei da minha culpa de telespectora dos horrores finalmente (con)vencida pelo enfado e não pelo meu discernimento do Bem e do Mal! Tal como sucedeu depois da última e arrastada temporada de 24, ou desta terceira, esgotadíssima e às voltas sobre si, de Prison break, o momento chega em que eu desligo e vou antes ver o delicodoce Dumbo com o meu sobrinho, ...e isso,acreditem, nem sequer é penitência.

Comentários

Capitão Merda disse…
Fiquei com alguma curiosidade, mas como não tenho televisor...

Fica bem
Depois eu leio o texto, primeiramente:

boas vindas!!!!

Um abraço.
Parece que o gosto por assistir atrocidades é antigo e profundo entre nós "humanos", né?

Essa história de repetir todo ano as cenas da crucificação do seu Deus, amar um Deus que crucificou o próprio filho...

Circo romano; execuções públicas; primeiras páginas de jornais populares; guerras...

É nóis, tudo doido!

Um abraço.
Capitão-Mor disse…
Fizeste um belo regresso ás lides da blogosfera. Fiquei contente...
Quarenta disse…
Venho saudar o seu regresso, Belinha.
E aguardo novos "posts" com a qualidade a que nos habituou...