Cinema do Brasil: Última parada 177




Última Parada 174 é o relato da vida de Sandro do Nascimento, sobrevivente da chacina da Candelária, ocorrida em 1993 no Rio de Janeiro, e que sete anos depois, em 12 de Junho de 2000, sequestrou um autocarro da linha 174 onde manteve vários reféns durante horas. O sequestro teve como desfecho a morte do jovem Sandro e da refém Geísa Gonçalves depois de intervenção policial. Vai representar o Brasil na corrida aos Óscares, Melhor filme em língua estrangeira, podendo vir a fazer parte dos escolhidos.
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Esta madrugada assisti na TV ao documentário Autocarro 174, de José Padilha. Este documentário recebeu o Amnesty Award em 2003 e quatro nomeações para o Grande Prémio Cinema Brasil 2003, nas seguintes categorias: Melhor documentário, Melhor argumento original, Melhor montagem e Melhor som. Obteve também o galardão de Melhor filme - Documentário, no Festival do Rio BR 2002,entre outras distinções. 

Uma tarde de sequestro transmitido em directo via TV para o Brasil resumida e analisada num longo documentário que vai até às origens do problema procurando com rigor explicações para responder à complexa questão:como é que uma sociedade gera deliquência? Em foco não apenas o papel dos agentes da polícia e a necessidade de verdadeiro profissionalismo e meios adequados para acudir a casos como esse. Em foco também a qualidade das respostas correcionais juvenis e prisionais que não acrescentam nem melhor carácter nem competências a quem é alvo delas, a interferência da cobertura televisiva nesta esfera de eventos e a forma como ela pode afectar quem prevarica, quem actua no terreno para lidar com a situação e a população que assiste. Ainda a ruptura com a família ou a falência desse apoio no processo de crescimento como antecâmera do problema, a ausência da escola/formação como instrumentos inclusivos. E a conclusão óbvia:ninguém está impune, ninguém está imune, uma sociedade não inclusiva irá sempre gerar delinquência. E a constatação da indiferença com que se aceita a delinquência como consequência natural e inevitável do sistema, um mero resíduo que se limpa à bomba, de forma também violenta, para que desapareça sem deixar vestígios, em detrimento do reconhecimento activo do necessário investimento na prevenção/resolução das suas causas. E a obstinação de quem não quer perceber que a falta de oportunidades destas crianças, as aprendizagens de rua a que são sujeitas desde tenra idade, as vivências -ou sobrevivências- que lhes couberam não as podem preparar para um grande futuro.

Chocante que a seguir ao massacre da Candelária a maioria da população inquirida tenha concordado com a actuação da polícia, mas sintoma evidente de que as pessoas apenas se preocupam em ter o problema resolvido à frente da porta da sua casa a qualquer preço relegando para segundo plano considerações mais profundas sobre a sua origem.Como disse uma das sequestradas ao sequestrador: "Neste ônibus a maior vítima é você." 

O documentário parece ter sido escrito para sustentar essa frase dita pela rapariga deliberadamente para conquistar a afeição de Sandro Nascimento. Mas o filme não é pró-Sandro Nascimento, o filme é pró-inclusão. Sempre existirão vozes a clamar que muitos indivíduos viveram e vivem na miséria, e que nunca prevaricaram nem prevaricarão,antes sempre lutaram por meios legítimos para sair dela,sem atentar contra a propriedade ou vida de terceiros. Ortega e Gasset deixou-nos aquela frase mais citada que eu sei lá, "Eu sou eu e a minha circunstância". Eu subscrevo que carregamos a nossa circunstância no que fazemos, no que pensamos, naquilo que escolhemos. Mas a frase continua e a parte seguinte não é muito citada: "...e se não a salvo, não salvo a mim mesmo."

Ora a questão que me coloco em relação a estas crianças e jovens, de tão reduzida que se encontra a possibilidade de exercerem os seus direitos cívicos e a sua vivência comunitária,é como é que vão elas alterar a sua circunstância e salvar-se mesmo sendo por ventura capazes de o desejar em algum momento? Será que existe um limite a partir do qual o retorno já não é possível? 

O novo filme, Última parada 174, certo que sendo um argumento "inspirado em...", terá de ser mesmo muito bom para conseguir não envergonhar tudo quanto este documentário busca e alcança.Comovente mas não lírica, eis uma peça de visionamento obrigatório para todos quantos se interessem por conhecer e perceber melhor o tempo de complexas contradições em que vivemos.





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