Ice Bucket Challenge, um banho de água fria



O verão está rapidamente a encaminhar-se para o fim. No preciso momento em que escrevo (13.00h) cai chuva da molhada em toda a cidade e se não fosse o bafo quente e irrespirável, o som dos automóveis a deslisar no piso encharcado far-me-ia acreditar que estou já no inverno. Haverá um Ice Bucket Challenge no inverno?! Um banho de água fria não cai mal em pleno verão. Mas neste só Junho teve temperaturas elevadas e até no sul a água do mar me trocou as voltas: mesmo em agosto, em vez da habitual sopa de alforrecas, saíu-me refresco salgado. Penso que já posso dizer que não foi um verão quente! Mas foi sem dúvida um verão molhado, a começar no desafio dos baldes e a acabar na chuva que tomba lá fora e que já causou inundações nas ruas habituais, transformadas assim em desafios para a autarquia - seja porque houve mau planeamento ou porque as sarjetas não foram limpas, venha a galocha. 

Dos desafios do balde de água gelada em prol da recolha de fundos para a investigação da esclerose lateral amiotrófica ficarão registados os inúmeros videos e memes na internet. A coisa chegou via EUA. Eis uma amostra do circo do nosso mundo-pop, gente de desporto, do cinema do desporto e da política, unidos em torno de um script banal, a produzir videos de qualidade duvidosa!! Mas houve quem tivesse dado a volta ao desafio de forma imaginativa marcando posição sobre aquilo que mais incomodou- o desperdício de litros de água potável, um bem escasso em tantas regiões do mundo, e até mesmo no Estado da Califórnia, que tem vivido das piores secas de que há memória na região. Quais macacos de imitação, figuras públicas e gente anónima, e até mesmo o sapo Cocas e Homer Simpson, alinharam contagiosamente no Ice Bucket Challenge tornando-o viral! No afã da brincadeira, quantos se terão esquecido de mencionar a razão caritativa do propósito, qual o número de gente que apenas brincou e não doou. Entrar no Facebook e apanhar com videos consecutivos do Ice Bucket Challenge dias a fio foi mesmo um balde de água fria, tudo o que é demais enfada. Mas este circo teve um resultado positivo até mesmo em Portugal: maior consciência da existência da doença de Lou Gherig, mais sócios inscritos, maior adesão de voluntários, mais inscrições nas formações e donativos angariados, isto foi referido pela APELA - Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica, a congénere da associação ALS dos EUA, em comunicado datado de Agosto.



Antes que se interroguem, eu digo. Eu não doei dinheiro para esta causa nem alinhei na cena do balde. Embora não ganhe muito dinheiro vou contribuindo quando posso e sinto que o devo fazer para algumas causas. De vez em quando também divulgo apelos solidários. Prefiro contribuir directamente para pessoas que necessitam de ajuda do que para instituições mas isto não é uma regra sem excepções. Analiso e depois decido. Contribuo para ajudar pessoas directamente e também pessoas que usam o dinheiro para cuidar de animais. Não gosto de fazer alarde das minhas contribuições, que são modestas, mas mesmo que fossem grandiosas eu continuaria a resguardar as minhas boas acções do público. Sou assim mesmo, detesto publicidade no que diz respeito a quase tudo o que faço e à minha pessoa. Curiosamente este ano tive de ir a um programa de televisão e fui, contrafeita, empurrada pela curiosidade de ver como seria a TV por dentro, fui. Mas não gosto de ser conhecida, reconhecida, durante anos não havia uma foto minha na internet, usava um avatar e um nome "artístico". Acontece também o oposto - gente que não perde a ocasião para "aparecer", gente que não perde um bom pretexto para fazer de qualquer momento um palco. Tenho consciência que nenhuma das atitudes é muito sã. Pois. Adiante.



Eu não fiz o desafio, mas muita gente fez. Debalde tentei escapar às imagens repetitivas do Ice Bucket Challenge mas elas invadiram o Facebook, o G+ e os blogues! A única coisa repetitiva que não me cansa são as ondas do mar a desenrolar-se sobre a praia. Quantos videos de gente a ser encharcada e a dizer "Brrr", "Ohhhhh","Uiiiiii" ou qualquer outra coisa, de punhos cerrados e aos pulinhos miúdos se podem aguentar? Figuras, figurões ou gente anónima, até parecia que não havia nada melhor para fazer neste verão! Muitos apelidaram a façanha de ridícula, recusando-se a cair no ridículo. Mas se fosse uma façanha ridiculamente criativa, excitante, divertida, isto é, se contivesse um qualquer apelo irresistível e único, eu talvez compreendesse. Isto? Lamento se os meus circuitos emocionais estão envelhecidos, snobs, sisudos. Does not compute. Estarei a perder o meu sentido de humor?



E depois dos videos veio a maré de insultos. A malta parece que lida mal com as zonas cinza. Tem que ser tudo branco ou preto. Os que alinharam no desafio defendiam com unhas e dentes que a água não foi desperdiçada, que a brincadeira foi um excelente estratagema de marketing e que sem baldes não teria havido doações expressivas. Os que não fizeram defendiam a pés juntos que a água é um bem escasso e que tudo não passou de desperdício, que teria sido suficiente doar e passar a palavra " a seco". O desafio do balde de água gelada transformou-se rapidamente numa troca de insultos nas redes sociais. Todos podemos especular com alguma segurança que entre os críticos haverá decerto quem não ligue a quantos litros de água usa para tomar banho ou lavar o carro ou a louça, ou regar o jardim no pino do meio-dia, é típico. Quis-me parecer que a tolerância online é ainda mais baixa do que cá fora, quem discordar de alguma coisa online é imediatamente rotulado de "hater"! Ora "hater" parece-me uma palavra um bocado forte para atirar a quem apenas defende um ponto de vista diferente, não vos parece?

Mas eu vivo no hemisfério sul e ainda não chegou cá a nova era do gelo. O meu cérebro ainda funciona. Por isso chamem-me hater ou o que quiserem. É que a verdade é mesmo esta: ajudar quem precisa é sempre uma excelente ideia, quanto a isso estamos conversados, é irrefutável. Mas deitar água pela cabeça abaixo sem ser para tirar o champô do cabelo, ó meus amigos, isso só tem um nome: desperdício. A minha primeira reação quando comecei a ver os videos foi de escândalo. Até pode ser divertido e bom marketing, mas é uma péssima ideia. Como é que puderam alinhar nisso? A água é um bem escasso e há dados alarmantes sobre o seu decréscimo no planeta, da Califórnia ao Médio Oriente, os cenários são preocupantes. Além disso vocês pagam por ela, caso não tenham ainda pensado nisso. Eu nem quando fico em hotéis desperdiço água! Ou electricidade. Faço exactamente o que faço em casa, poupo-a.

Li no Facebook que a doença de Lou Gherig é uma doença rara que afecta uma percentagem pequena da população e que outras causas se abraçadas com idêntica paixão poderiam gerar um efeito mais abrangente junto de quem precisa, ou seja, a mesma recolha de fundos poderia traduzir-se na obtenção de um maior benefício. Concluindo: até mesmo vivendo no hemisfério sul e não tendo o cérebro congelado sempre me escapam alguns detalhes. Ter informação é fundamental, a educação é precisa até mesmo para a solidariedade. Isto foi o que retive de todo este circo de verão, algo para refletir, sobretudo numa época em que as solicitações solidárias são constantes, online e não só.

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