Mistress America - pequena crítica do filme


No Verão vi um filme de Noah Baumbach que se chama While we're young e que nos mostra as atribulações de um casal de quarentões dividido entre a  vontade de reaver a juventude perdida e o desgosto de não ter realizado os seus sonhos. É lixado chegar àquele ponto na vida em que se conclui que já não se é jovem, mesmo se ainda se parece jovem no espelho de acordo com as modas, mas o corpo começa a ranger nas dobradiças. Pior ainda quando o grupo de amigos a que se pertence  parece ter conseguido tudo o que se ambicionava ou o que é considerado basilar. E quando se conhecem jovens que são mesmo jovens, não apenas jovens de espírito, a coisa torna-se chocante se não for devidamente processada.  E é assim que Josh (Ben Stiller) e Cornelia (Naomi Watts), o casal nova iorquino em causa, se deixam seduzir pela juventude e estilo hipster de um casal  na casa dos vinte - Adam Driver (Jamie) e  Amanda Seyfried - que surge do nada na sua acomodada vida para reinar. Após um momento de estranheza os dois ficam deslumbrados com o par e alinham num convívio original, convencidos  de estarem assim de novo em sintonia com o momento, de naquela vivência terem encontrado o meio  para ultrapassarem os seus hábitos de consumo datado e perspectivas sem horizonte,  e agarrarem o presente com sangue novo. 

Mas a verdade desta nova geração não era melhor nem pior do que deles, era a sua, apenas diferente e mais não fazia do que valorizar aquilo que eles tinham descartado - os jogos de tabuleiro, os gira-discos e o vinyl, - ou ignorar o que eles consideravam ser a marca de conforto e sofisticação – coisas como usar as redes sociais, telemóveis espertos, o Netflix. Na realidade não havia nada de tão revolucionário assim na sua maneira de ser.  O rapaz era o cliché do hipster, uma palavra que eu não gosto pois acho que não passa de uma alternativa para boémio, mas com menos autenticidade e estilo; a rapariga vivia para si mesma, alheia aos outros e tinha um negócio de batidos ou iogurtes em mãos, algo meio experimental, se bem me lembro.

Esta lua de mel entre os dois casais vai ser interrompida. Sucede-lhe a traição e o sentimento de terem sido manipulados quando as fronteiras do que é ético fazer em termos criativos são testadas.  Josh (Ben Stiller) acredita que o documentário também pode ser uma coisa pessoal, não apenas ficção. Mas o seu então protegido aspirante a realizador de documentários e recente amigo  acaba por se distanciar deste “ensinamento” que não é próprio da sua geração e que ele não entende.  Na era dos telemóveis não há esta dualidade entre verdade e ficção. Tudo é verdade, há um direito natural às imagens e ao seu uso. E de repente Jamie (Adam Driver), o hipster, consegue ter sucesso ao mostrar o seu filme  e Josh, o documentarista agora professor resignado,  continua no mesmo lodo creativo em que se arrastava há anos. 

Curiosamente o foco no processo de criação, nos direitos de uso de uma ideia ou material de terceiros  também estão presentes em Mistress America, do mesmo realizador, que vi ontem à noite. Este filme pode ser visto como um retrato de uma certa juventude nova iorquina, ou como o relato de uma amizade no feminino ou como uma análise de um processo criativo entre  uma escritora em potência (Tracy) e a sua musa, (Brooke) uma mulher que ela achou estar destinada a ser uma personagem literária. Ou tudo isso. A relação entre Brooke (Greta Gerwig)  – uma nova iorquina algo neurótica - e Tracy (Lola Kirk) – a jovem dos subúrbios que se muda para Nova Iorque para cursar escrita criativa numa universidade – também acaba por ser rompida quando Brooke descobre acidentalmente que a jovem tinha escrito um conto inspirado nas suas vivências em comum,  o que é visto como uma traição. E o direito a usar as ideias criativas ou não já tinha ditado o fim de uma amizade entre a mesma Brooke e Mamie-Claire, - uma amiga antiga que além do padrão da tshirt lhe tinha roubado o namorado e os gatos, - esta assumindo que era menos criativa mas que tinha jeito para fazer as coisas, enquanto Brooke era só castelos no ar.

E, de facto, assim era. Brooke, magnética, cheia de grandes ambições e ideias, é um manual de regras para a vida que oferece a todos de borla mas que não consegue aplicar a si mesma.Ela atravessa Nova York para subir a um palco, dar explicações a um puto e ainda ser treinadora num ginásio; faz projectos de decoração; corre bares, tenta viver o mais possível cada momento; vai a entrevistas com potenciais investidores sem saber nada do assunto para realizar o sonho da sua vida – abrir um restaurante projecto que, obviamente, não planeou até ao fim. Alimenta a ilusão de que este vai permitir-lhe poder parar em vez de passar o tempo a correr atrás dos outros, ela quer ali  receber os outros, como uma mãe. Apesar de não parar um segundo, a vida parece não a ter levado a lado algum.  E isto ela sabe, confessando que chegou o momento em que tudo é tarde demais, o tempo escasseia. O que ela tem a menos, possui Tracy em abundância: juventude, tempo para tudo fazer, errar, aprender, e ter sucesso num tempo em que as coisas ainda podem ser fáceis. 

Contrastando com a exuberância e protagonismo de Brooke, aí vem Tracy, a tímida e desamparada caloira que procura a nova iorquina aconselhada pela mãe que está prestes a casar-se com o pai de Brooke. Embora Brooke seja também um pouco insuportável na sua maneira de ser, Tracy deixa-se fascinar pela trintona até porque nada é o que esperava na Big Apple ou em Barnard College: sente-se isolada e rejeitada, social e intelectualmente, como se todos os dias fosse a uma festa onde não conhecesse ninguém. Comparando-se com Brooke ela é um projecto, inicialmente ela não se apercebe de que, tristemente, Brooke não passa de uma mulher desesperada, que, nos seus 30 anos, tal como Josh em While we're young, vê o relógio a avançar e o tempo a esgotar-se para concretizar os seus sonhos.  No final do filme Tracy está diferente, cresceu intelectual e emocionalmente, ultrapassados o deslumbramento e a ruptura ela recupera a ligação com Brooke e prepara-se para fundar o seu próprio clube de literatura.

Mistress America conta com uma boa realização e edição, boas interpretações deste par de actrizes,  um argumento muito bem escrito e  diálogos espirituosos e desarmantes. Tal como While we're young, fez-me lembrar Woody Allen ou comédias mais antigas, cheias de energia, algum absurdo e um toque teatral. Apenas me referi às duas principais personagens do filme mas existem ainda interessantes personagens secundárias com desempenhos igualmente bons, essenciais para a carga humorística presente em Mistress America e em especial as que gravitam mais estreitamente em torno do par principal. Não sendo uma obra-prima é um filme que quer manifestamente inovar dentro do estafado género da comédia e do qual se desprende muita criatividade, frescura e espontaneidade, raros atributos no cinema da actualidade.

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