No Dia dos Namorados sugiro Lagosta


É um dos filmes mais bizarros que vi nos últimos tempos. Foi realizado por Yorgos Lanthimos, um realizador de nacionalidade grega. É o primeiro filme que vejo dirigido por ele e chama-se A lagosta. É um misto de comédia negra e terror, mas do tal que não causa sobressaltos, só uma certa náusea e desconforto mental. Lembrei-me de escrever a propósito uma vez que estamos em cima do Dia dos Namorados. Não sucede comigo mas dizem que esta data deprime os solteiros e que causa ansiedade nos casais. Pelos vistos é uma temporada de alta pressão para todos. A minha sugestão maliciosa é que vejam A Lagosta  no conforto íntimo do vosso sofá. É uma história de amor, encaixa no espírito da época, ainda que um filme assim surreal possa gerar sentimentos contraditórios de paixão ou ódio, tal como o Dia de São Valentim. Convém jantar algo leve para fazer a digestão de um par de cenas mais grotescas e a imprevisível tragédia dos minutos finais.

Imaginem então um tempo e um lugar onde o sistema não tolera gente solitária. Um pouco como o que parece acontecer no Dia de São Valentim, aquele dia escalado para lembrar a forma como a sociedade glorifica o amor romântico em tons de vermelho e cor-de-rosa. É aquela altura do ano em que tudo parece conspirar para o enaltecimento dos pares, aquele que mais se aproxima da dicotomia que o filme nos mostra: um mundo dividido onde os que estão sós são olhados como diferentes. No filme, não ter par é pior do que ser diferente, é ilegal. Não ter vida conjugal acaba por determinar a perda da condição humana, essa inabilidade ou incapacidade de acasalar despromove os indivíduos à condição de animais, seres irracionais. (Mas há algum humor nisto: uma vez no mundo natural eles têm uma segunda hipótese de encontrarem o seu igual.) Ali, quem ficar sem parceiro é preso e forçado a fazer um retiro de 45 dias num Hotel durante o qual procurará um novo par entre os hóspedes. Se não conseguir será transformado (cirurgicamente) num animal selvagem da sua escolha e depois libertado nos arredores. Se o tempo expirou existe uma possibilidade de conseguir mais algum participando em caçadas de solitários na floresta. Estes indivíduos recusam o check in no "Hotel do amor" e escondem-se ali. Por cada solitário abatido – são anestesiados e levados para o hotel para serem transformados em animais - ganham um dia extra.

David é um recém divorciado que foi abandonado pela mulher e chega ao hotel de semblante carregado, acompanhado por um cão, o seu irmão, que, ficamos a perceber, não tinha sido bem sucedido no internamento compulsivo. David é interpretado por Colin Farrell, mais gordinho do que é habitual e com um pouco atraente bigode! O ambiente que o aguarda é o mais impessoal possível, todos recebem vesturário idêntico e passam pelos mesmos rituais. Todos se expressam e movem com particular abandono e inexpressão. David tenta conformar-se com o seu novo modo de vida, faz amizades entre os homens e tenta a sua sorte com as mulheres. A rotina é hostil e completamente controlada pelos gerentes do Hotel através de um estrito código. Por exemplo, os casais que entretanto se formarem podem jogar ténis, mas os solitários só podem jogar golfe. Se os homens forem apanhados a masturbar-se o castigo surge pela manhã: na sala onde todos se juntam para tomar o pequeno-almoço é servida uma tostadeira onde eles serão forçados a meter a mão transgressora. Os hospedes devem encontrar um parceiro com quem tenham algo em comum: por exemplo, deitarem ambos sangue pelo nariz ou gostarem de bolachinhas, ou coxearem. Os defeitos e não as qualidades actuam como factores chave para ditar uma boa relação. (E porque não quando nos dias da internet parecem bastar fotos com poses artificiais e mensagens superficiais nas redes para juntar duas pessoas num romance. ) Os mais desesperados não hesitam em fingir um desses traços ainda que falsas ligações sejam monitorizadas, porque proibidas, e sancionadas. São os gerentes que avaliam a aprovam as ligações amorosas. Se tudo correr bem, o casal enfrenta um teste: uma estadia a dois num barco. E se surgirem problemas os gerentes atribuem ao casal em conflito uma criança entendida como o agente desbloqueador por excelência.

David tenta uma aproximação a uma mulher conhecida por não ter coração, mas a sua crueldade é de tal ordem que ele não consegue fingir idêntica natureza e é desmascarado. Mais perto de ser tranformado numa lagosta – o animal que ele escolhe por ter sangue azul, e viver 100 anos e ser sempre fértil – ele foge para a floresta e junta-se ao grupo dos solitários. Para sua surpresa – e minha - o grupo é igualmente dominado por um código cruel. Também ali não há liberdade para as pessoas sentirem e serem como desejam ser, quem for apanhado a beijar-se terá os seus lábios cortados. A regra é o celibato. A líder mobiliza-os em assaltos ao Hotel com o objectivo de desmascarar a pretensa harmonia em que os casais ali vivem e provar que as suas vidas são uma farsa. David encontra então um novo amor – e a mulher perfeita é perfeita porque vê mal, tal como ele - e é correspondido. O casal apaixonado elabora formas de viver e comunicar o seu amor sem suspeitas mas acaba por ser descoberto. Nada podia correr pior? Podia. A fuga é a única saída.

Bem interpretado, bem realizado, cuidado na construção dos ambientes e escolha dos exteriores, A lagosta conta com uma banda sonora muito presente onde a trechos de compositores clássicos - Beethoven, Shostakovich, Stravinsky - se juntam êxitos recentes, a balada Where the Wild Roses Grow, de Nick Cave e Kylie Minogue, ou Something’s Gotten Hold of My Heart, cantado com apuro ridículo pelo casal de gerentes durante um baile no Hotel.

A Lagosta é um filme que tanto cativa como causa repulsa. A sua estranheza desconcertante e violenta e o seu humor seco e peculiar não são para todos. Tornam até difícil reconhecer que há nele uma certa ternura. O que parece, analisados os dois lados deste estranho mundo, é que poucos indivíduos têm a coragem para se revoltar preferindo até fingir aquilo que não são, no primeiro caso, ou aceitar serem guiados por um líder que os manda cavar a própria cova na floresta para quando a morte chegar. O poder do sistema, seja ele qual for, para conformar a vontade dos indivíduos é grande. E aqueles que encontram forças para escapar terão de pagar o seu preço. Encarado assim A Lagosta é até um filme muito revolucionário. Mas quem sabe o que Yorgos Lanthimos, o realizador, realmente quis dizer? Feliz Dia dos Namorados!

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